Casa Europa
Anotações (quase) diárias sobre os caminhos da Europa e da União Europeia
Sobre o referendo europeu
Artigo de opinião publicado na edição de hoje do semanário O Diabo:
«1. Ainda os 27 chefes de Estado e de governo dos Estados-membros da União Europeia se felicitavam mútua e reciprocamente sobre o sucesso em torno do Tratado reformador das instituições europeias alcançado na Cimeira informal do Conselho Europeu de Lisboa do passado mês de Outubro e já grande parte da atenção dos analistas e comentadores se concentrava na forma ou no método que iria ser utilizado nos diferentes Estados para promover a sua ratificação. Verdade se diga que para esse recentrar das atenções em torno mais do processo de ratificação do Tratado do que do Tratado em si mesmo, muito contribuiu uma declaração (pouco comentada, por sinal) do senhor Gordon Brown, ainda antes de começarem os trabalhos da Cimeira, segundo a qual existiria já um gentlemen agreement entre os 26 chefes de Estado e de governo da União – com excepção do Primeiro-Ministro irlandês, constitucionalmente obrigado a ratificar o Tratado por via referendária – no sentido de evitarem a ratificação do tratado através de referendo, escapando assim à auscultação directa dos cidadãos da União. Curiosamente – ou talvez não – nenhum outro chefe de Estado ou de governo desmentiu a existência do tal acordo de cavalheiros a que se referiu o líder do governo inglês. O que, em lugar de acalmar os ânimos, apenas serviu para fornecer um novo argumento a quem pretendeu colocar a ênfase da discussão mais no processo de ratificação do Tratado do que na sua específica materialidade e nas diferentes soluções e inovações que o mesmo preconizou.
2. Ora, Portugal não fugiu à regra – e desde a Cimeira de Lisboa as atenções têm estado mais concentradas na forma e no método de promover a ratificação do Tratado do que, propriamente, no Tratado em si mesmo. A este respeito, quanto à forma de ratificação do futuro Tratado de Lisboa, convirá dar por adquirida a idêntica legitimidade jurídica quer da ratificação por via parlamentar quer da ratificação por via referendária. Face ao normativo constitucional vigente nenhuma disposição nos autoriza a conferir maior dignidade ou qualquer supremacia a uma forma de ratificação relativamente à outra. Dito isto, convirá recolocar a questão no seu terreno próprio e esse é o político. É que se do ponto de vista jurídico existe uma completa igualdade quanto a uma ratificação por via parlamentar ou a uma ratificação por via referendária, será que do ponto de vista político a opção por uma ou por outra via têm idêntico valor e igual legitimidade? A resposta a esta questão remete-nos inevitavelmente para as últimas eleições legislativas para a Assembleia da República onde a generalidade dos partidos com assento parlamentar se comprometeu a promover a ratificação do Tratado europeu então em fase de ratificações por essa Europa fora recorrendo à realização de um referendo popular. Acontece, porém, que o Tratado europeu de que então se falava era outro que não o Tratado de Lisboa; era o Tratado constitucional, o tal que pretendia estabelecer uma Constituição para a União Europeia. E, apesar de uma esmagadora maioria das soluções materiais consagradas na anterior e defunta Constituição Europeia haver transitado ipsis verbis para o novo Tratado de Lisboa, a primeira e fundamental questão que se coloca é a de saber se as promessas eleitorais relativas à forma de ratificação da anterior Constituição Europeia se devem transferir automaticamente para o modo de ratificação do novo Tratado de Lisboa, considerando sobretudo a sua grande semelhança material. Ora, salvo outra e melhor opinião, não devem. E não devem porquanto apesar de possuírem grandes semelhanças materiais há uma diferença fundamental entre a defunta Constituição Europeia e o novo Tratado de Lisboa, diferença essa que não passa pelo facto de aquela consolidar e substituir todos os Tratados comunitários e da União por um único documento jurídico. A diferença fundamental é que aquela, a ter entrado em vigor, teria assinalado uma profunda alteração matricial do que era e seria a União Europeia, conferindo-lhe uma significativa dimensão “estadual” ou “para-estadual”, enquanto organização política dotada de uma Constituição como é típico dos Estados, o que afectaria indelevelmente a sua natureza jurídica. Ora, o Tratado de Lisboa, pelo contrário, não aspira a tanto, não ousa tanto, não mexe na matriz jurídica da União Europeia, não altera a sua natureza de organização internacional sui generis. Limita-se a reformar o modo de funcionamento das suas instituições e, na esteira de anteriores e idênticos Tratados internacionais promover alguns aprofundamentos do processo de integração – aprofundamentos que se traduzem, por exemplo, na substituição da regra da unanimidade pela regra da maioria qualificada para aprovação de uma série de actos normativos diferentes políticas já comunitarizadas ou que passarão a sê-lo. Nessa linha é um Tratado absolutamente igual a todos quantos já foram aprovados e que alteraram os tratados fundadores (excepção ao Tratado da União Europeia o qual, tendo criado a União, alterou geneticamente a natureza dos anteriores Tratados comunitários e, nessa medida, deveria ter sido submetido a referendo popular) e que foram ratificados por via parlamentar.
3. Porém, na fase em que a Europa da União se encontra e no momento que conhece o processo de integração da Europa, há uma escolha fundamental que não pode deixar de ser feita, sob pena de poder condenar definitivamente esse mesmo processo – «democratiza-se» o processo europeu convocando os cidadãos para uma efectiva participação nas principais deliberações que têm de ser tomadas, desde logo em homenagem à densificação do próprio conceito de cidadania da União, ou permanece-se na postura de reservar tal processo e as suas principais decisões apenas para uma elite bem-pensante, supostamente bem informada e cultivada, capaz de ler para além da segunda página de um projecto de Tratado europeu, legitimada pelo conforto da democracia representativa ou dos graus académicos e universitários? Esta é, sem subterfúgios, a escolha que tem de ser feita. E a resposta à questão colocada não me suscita qualquer dúvida: ou o processo europeu se democratiza e convoca o soberano popular a nele participar mais do que na simples eleição do Parlamento de Estrasburgo a cada quinquénio, ou esse mesmo processo se descredibiliza, se distancia dos cidadãos, se restringe a pseudo-elites. Pela minha parte opto incondicionalmente pela primeira hipótese, em nome de um projecto europeu que ou é sentido e vivido pelos cidadãos da Europa ou arrisca-se a não ser coisa nenhuma.
Surge-nos, então, quiçá, a dúvida principal a que há que dar resposta – como conciliar a premissa que aceita a ratificação do Tratado de Lisboa por via parlamentar, com a exigência de um maior grau de democraticidade da própria União, que exige o chamamento dos cidadãos a uma participação efectiva e por via referendária desde logo no envolvimento nacional no projecto europeu?
4. Só aparentemente, porém, a resposta a ambas as questões será paradoxal ou incompatível. De facto, na actual fase do processo europeu e levando em consideração a forma como se vem processando o diálogo sobre as questões europeias em Portugal, crê-se ser possível compatibilizar o princípio da ratificação parlamentar do Tratado de Lisboa com a ambição de envolver os cidadãos no próprio projecto europeu. De que forma? Fazendo suceder a ratificação parlamentar do referido Tratado da realização de um referendo popular onde se pergunte aos cidadãos, de forma simples e clara – concorda com a participação de Portugal na União Europeia funcionando esta nos termos fixados pelo Tratado de Lisboa? Sem subterfúgios, sem capciosismos como os que estavam subjacentes à última pergunta aprovada pela Assembleia da República e julgada – e muito bem! – inconstitucional pelo Tribunal Constitucional. Uma pergunta simples como manda a Constituição, séria, que convoque a cidadania para um amplo debate sobre a presença portuguesa na União Europeia permitindo, tudo o indica, (i) discutir de forma séria a União Europeia; (ii) evidenciar o amplo consenso popular em torno da participação de Portugal na Europa da União; (iii) aos partidos políticos do arco da governabilidade manterem-se fiéis à promessa eleitoral de realizarem um referendo sobre questões europeias (não, obviamente, sobre a Constituição Europeia pois a mesma já pertence à história); (iv) separar, definitivamente, as águas em matéria de opção europeia do país, obrigando a que se pronunciassem sobre tal opção os sectores radicais da sociedade, mas também os neo-soberanistas, os neo-nacionalistas, neo-liberais e os comunistas de ontem e de antanho, bem como as demais franjas que ora são a favor da Europa dos fundos como se manifestam contra a Europa política conforme se lhes afigura mais vantajoso para o debate político interno. A democracia portuguesa agradeceria se este referendo fosse convocado; a legitimação da participação de Portugal na Europa da União sairia de sobremaneira reforçada; a classe política sairia redignificada pelo cumprimento de promessas feitas em tempo eleitoral. E «a Europa» poderia ser discutida e explicada de forma clara sem ser em ambientes de crise que são aqueles em que – infelizmente – mais protagonismo adquire o debate europeu em Portugal.»