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A vida de Václav Havel, na verdade - by Jirí Pehe

Terça-feira, 20.12.11

"Muito antes do regime comunista da Checoslováquia desabar em 1989, Václav Havel era uma das figuras mais notáveis da história checa – sendo já um dramaturgo de sucesso quando se tornou no líder não oficial do movimento de oposição. Embora esperasse regressar à escrita, a revolução catapultou-o para a presidência da Checoslováquia e após a divisão do país, em 1993, foi eleito presidente da recém-criada República Checa e exerceu esse cargo até 2003. Uma carreira política assente na coincidência histórica fez de Havel um político invulgar. Não só levou para a política pós-1989, uma certa desconfiança nos partidos políticos; como ex-dissidente, considerou essencial enfatizar a dimensão moral dos políticos – uma posição que o conduziu a uma rota de colisão com os pragmáticos e os tecnólogos do poder, cujo principal representante, Václav Klaus, sucedeu-o como presidente.

 

A vida pública de Havel podia ser dividida em três períodos distintos: artístico (1956-1969), dissidente (1969-1989) e político (1989-2003) – excepto pelo facto de ele ter sempre combinado as três sensibilidades nas suas actividades públicas. Como um promissor dramaturgo, nos anos 1960, foi certamente muito “político” e centrava-se no absurdo do regime. Foi também um dos críticos mais sonantes da censura e de outras violações dos direitos humanos, o que o tornou num dissidente, até mesmo durante a liberal “Primavera de Praga” de 1968.

 

Havel foi colocado na lista negra e publicamente perseguido, após a invasão da Checoslováquia conduzida pelos soviéticos em Agosto desse ano, mas continuou a escrever peças anti-totalitárias. Em 1977, ele e mais de 200 outros dissidentes fundaram o movimento Charter 77[Carta 77], que rapidamente se converteu numa principal força de oposição. Havel foi um dos três primeiros porta-vozes do movimento.

 

No ano seguinte escreveu um ensaio seminal, The Power of the Powerless, no qual descreveu o regime da “normalização” na Checoslováquia pós-1968, como um sistema moralmente falido baseado em todas as mentiras infiltradas. Em 1979, foi condenado a cinco anos de prisão pelas suas actividades no Comité dos Acusados Injustamente, uma extensão do Charter 77 que monitorizava os abusos dos direitos humanos e as perseguições na Checoslováquia. Foi libertado quase no final do cumprimento da pena, após contrair pneumonia (uma fonte de sérios problemas de saúde para o resto da sua vida). As suas Letters to Olga [Cartas a Olga], ensaios filosóficos escritos na prisão e endereçados à sua esposa, rapidamente se tornaram num clássico da literatura anti-totalitária.

 

Como presidente da Checoslováquia, Havel continuou a combinar as suas sensibilidades políticas, dissidentes e artísticas. Insistia em escrever os seus próprios discursos, concebendo muitos deles como trabalhos filosóficos e literários, nos quais ele não só criticava a tecnologia desumanizada das políticas modernas, como também apelava, repetidamente, aos checos para que não se tornassem vítimas do consumismo e das políticas partidárias sem sentido.

 

Este era o seu conceito de democracia baseado numa sociedade civil e numa moralidade fortes. Conceito que o distinguiu de Klaus, o outro protagonista da transformação pós-comunista, o qual defendia uma transição rápida, despojada, se possível, de escrúpulos morais e impedimentos inconvenientes causados pelo Estado de direito. O conflito chegou ao auge em 1997, quando o governo liderado por Klaus caiu depois de vários escândalos. Havel descreveu o sistema económico criado pelas reformas pós-comunistas de Klaus como o “capitalismo mafioso”.

 

Embora Klaus nunca tenha regressado como primeiro-ministro, a sua abordagem “pragmática” impôs-se na política checa, especialmente depois da saída de Havel da presidência em 2003. Efectivamente, a grande derrota de Havel pode ter sido o facto de a maioria dos checos ver agora o seu país como um lugar onde os partidos políticos funcionam como agentes de grupos económicos poderosos (muitos deles criados pelo processo de privatização, muitas vezes corrupto, supervisionado por Klaus).

 

Nos últimos anos da sua presidência, os adversários políticos de Havel ridicularizaram-no como sendo um moralista ingénuo. Muitos checos comuns, por outro lado, não estavam satisfeitos com ele, não só devido àquilo que parecia um moralismo implacável, mas também porque ele reflectia a falta de coragem que tiveram durante o regime comunista. Enquanto continuava a desfrutar o respeito e a admiração além-fronteiras, se apenas para continuar a sua luta contra os abusos dos direitos humanos em todo o mundo, a sua popularidade em casa estava abalada.Mas as coisas mudaram. Os checos, graças à sua crescente insatisfação com a corrupção omnipresente no sistema político actual e outras falhas, têm vindo a apreciar, cada vez mais, a importância dos apelos morais de Havel. De facto, agora, após a sua morte, está prestes a ser aplaudido como alguém que previu muitos dos problemas actuais e não só internamente: enquanto presidente chamou a atenção, vezes sem conta, para as forças auto-destruidoras da civilização industrial e do capitalismo mundial.

 

Muitos questionar-se-ão sobre o que terá tornado Havel excepcional. A resposta é simples: decência. Ele era um homem decente, com princípios. Ele não combatia o comunismo por haver uma oculta agenda pessoal, mas simplesmente por ser, no seu ponto de vista, um sistema imoral e indecente. Quando, enquanto presidente, apoiou o bombardeamento da Jugoslávia em 1999 ou a invasão do Iraque em 2003, não falou sobre os objectivos geopolíticos ou estratégicos, mas sobre a necessidade de travar os abusos dos direitos humanos por parte de brutais ditadores.

 

Agir de acordo com tais crenças, na sua carreira política, tornou-o num político pertencente a uma espécie que o mundo contemporâneo já não conhece. Talvez seja por isso que enquanto o mundo – e a Europa em particular – atravessa um período de crise profunda, a linguagem clara e de coragem que possa trazer mudanças significativas esteja a faltar.

 

A morte de Havel, um grande adepto da integração europeia, é assim extremamente simbólica: ele foi um dos últimos de uma geração de políticos em extinção, que conseguia liderar eficazmente em períodos excepcionais, porque o seu primeiro compromisso era com a decência comum e com o bem comum, não para manter o poder. Se o mundo quer sobreviver com sucesso às suas várias crises, o seu legado deve permanecer vivo." [Fonte]

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publicado por Joao Pedro Dias às 23:43