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Queixa da CMA à Comissão Europeia sobre a introdução de portagens nas ex-SCUT's

Domingo, 21.11.10

Texto integral da queixa apresentada pela Câmara Municipal de Aveiro, junto do Director-Geral da Mobilidade e Transportes da Comissão Europeia, Matthias Ruete, a propósito da introdução de portagens nas antigas SCUT’s, auto-estradas sem custos para o utilizador:


«ASSUNTO: Apresentação, por parte do Município de Aveiro, representado, nos termos legais, pelo Presidente da sua Câmara Muni­cipal, de queixa à União Europeia (Comissão Europeia) contra o Estado por­tuguês por introdução de taxas de portagem em auto-estradas anteriormente sem custos para os utilizadores (SCUT), em especial na A25, também denominada SCUT das Beira Lito­ral/Beira Alta, assim introduzindo (i) uma limitação à livre circulação de pes­soas, mas também (ii) uma violação ao princípio da não discriminação em razão da nacionalidade – ambos princí­pios básicos acolhidos no Tratado sobre o Funcionamento da União Euro­peia e demais legislação comu­nitária conexa em vigor.

 

Ex.mo Senhor Director-Geral,


1. Identificação do requerente

O Município (português) de Aveiro, ora requerente, integra o Distrito de Aveiro (Portugal), tem 199,9 km2 de área, dos quais 61,50 km2 são de área alagada, ocupada quase exclusivamente pela denominada “Ria de Aveiro”, 73.335 habitantes recenseados (2001), manifestando uma tendência de cres­cimento significativa, na ordem dos 10 % (INE, 2001, Censos), a qual cor­responde ao dobro do valor verificado para Portugal. Engloba 14 freguesias (Ara­das, Cacia, Eirol, Eixo, Esgueira, Glória, Nariz, Nossa Senhora de Fátima, Olivei­rinha, Requeixo, Santa Joana, São Bernardo, São Jacinto e Vera Cruz) e é limi­tado a norte pelos Municí­pios de Albergaria-a-Velha, a leste por Águeda e Oli­veira do Bairro e a sul por Ílhavo e Vagos. É atravessado pela auto-estrada designada A25 que liga o Porto de Aveiro a Vilar Formoso, na fronteira de Por­tugal com Espanha. A faixa litoral do território nacional, onde se situa Aveiro, assume-se como a zona do país com maiores dinâmicas, nomeadamente, a nível demográfico, económico e social, já que é nesta área que existe uma maior concentração de população, de investimentos públicos e privados e de equipamentos. Aveiro é a capital do distrito com o mesmo nome, situado na Região do Baixo Vouga (de acordo com a classificação NUTE III).

 

Segundo estudos fidedignos existentes neste Município, devido ao seu forte desenvolvimento económico, o concelho de Aveiro continua a apresentar uma atracção crescente. Os fluxos pendulares de residentes de outros concelhos para Aveiro aumentaram significativamente, passando de aproximadamente 10.000 para mais de 25.000 em 10 anos. Assim, o saldo que já era positivo para Aveiro em 6.000 cidadãos no ano de 1991 acentuou-se, aumentando para 18.000 cidadãos em 2001.


Nota-se, ainda, que há cada vez mais indivíduos a comutar para mais longe (entre distritos): em 1991 estas deslocações pouco ultrapassavam os 2.000 indivíduos, enquanto em 2001 eram já 13.000.


O número de indivíduos que se desloca, tendo como origem ou destino o concelho de Aveiro (incluindo os que permanecem dentro do concelho) aumentou mais de 60% entre 1991 e 2001, ultrapassando os 73.000 em 2001.


Em 1991, o meio de transporte mais utilizado era já o automóvel com cerca de 25% (só como condutor). Andar a pé e de bicicleta (incluindo motorizada) ocupava o segundo lugar com pouco mais de 21% para cada modo. Os transportes públicos (comboio e autocarro), se considerados conjuntamente também partilham o segundo lugar. Para 15,4% dos indivíduos, o meio de transporte para o trabalho/escola era o autocarro.


Em 2001, a utilização do automóvel (como condutor) duplicou para 49,8%. Todos os outros modos (com excepção de automóvel como passageiro) sofreram reduções significativas, sendo a maior redução no uso da bicicleta e motorizada que baixou de 21,1% para 7,6% (menos 2/3).


Os Transportes Públicos (autocarro) apresentaram uma queda significativa (registando uma diminuição de 15,4% para 9,6%) e as deslocações feitas a pé também foram perdendo importância, reduzindo de 21,2% para 13,4%.


Estima-se assim que Aveiro cidade atrai actualmente mais de 50.000 veículos privados diariamente. O destino do tráfego é 35% para o centro da cidade e 39% para os arredores. Os restantes 26% limitam-se a circular. Os conduto­res que deixam os seus veículos estacionados por 9 a 10 horas correspondem a 23% dos veículos que chegam à cidade. A maioria das viagens (42%) faz-se por motivos profissionais.

 

2. Dos factos

Caracterizado de forma sintética o Município de Aveiro e evidenciados os principais traços que, no domínio da mobilidade, lhe estão associados, impõe-se destacar que a situação geográfica privilegiada do Município de Aveiro, a crescente impor­tância gradualmente desempenhada pelo seu porto marítimo – de pesca e mercadorias – e os relevantes e positivos indi­cadores económi­cos de toda a vasta região em que o Municí­pio se insere, fizeram com que, a partir dos anos oitenta do século passado, o governo português – com o apoio de fundos comunitários especialmente consignados ao projecto – tivesse dado início à construção do deno­minado Itinerário Principal 5 (doravante, ape­nas e abre­viadamente IP5) – rede viária estruturante do plano rodoviário nacional que, estabelecendo a ligação com a fronteira espanhola, em breve trans­formou aquela via no principal e mais importante eixo rodoviário nacio­nal de ligação de Portugal a Espanha em particular e à Europa em geral, tanto na vertente do transporte rodoviário ligeiro de pessoas como do transporte rodoviário pesado de passageiros e mercadorias.


As deficiências técnicas reconhecidas em alguns troços do referido IP5, o ele­vado volume de trá­fego no mesmo registado mas, sobretudo, a elevadíssima taxa de sinistra­lidade ali ocorrida – que transformou rapidamente o mesmo IP5 numa das vias com maior sinistralidade em Portugal e na Europa – leva­ram a administração central portu­guesa, no final dos anos noventa do século passado, a encetar o processo de construção da auto-estrada A25 – que na maior parte da sua extensão foi construída sobre o referido Itinerário Princi­pal, duplicando-o por forma a conferir-lhe um perfil de auto-estrada – a auto-estrada que o Plano Rodoviário Nacional denominou como A25.

 

3. Do direito nacional aplicável e da sua evolução

Através do Decreto-Lei nº 267/97 de 2 de Outubro – «considerando a neces­sidade do aumento da oferta de infra-estruturas rodoviárias cuja utilização, no caso de algumas auto-estradas, não repre­sente um custo directo para o utente» – foi estabelecido o regime de realização do con­curso público inter­nacional para a concessão da concepção, construção e exploração em regime de portagens sem cobrança aos utilizadores (SCUT) de lanços de auto-estra­das da rede rodoviária nacional da deno­minada A25.

Posteriormente, através do Decreto-Lei nº 142-A/2001 de 24 de Abril, «foram aprova­das as bases da concessão da concepção, projecto, construção, finan­ciamento, explora­ção e conservação de lan­ços de auto-estrada e conjuntos viários associados, designada por Beira Litoral/Beira Alta», atri­buindo-se à Sociedade Lusoscut–Auto-Estradas das Beiras Litoral e Alta, S. A., a respectiva con­cessão.

 

Por via da Resolução do Conselho de Ministros nº 40-A/2001 da mesma data (24 de Abril) foi «aprovada a minuta do contrato da concessão de lanços de auto-estradas e conjuntos viários asso­ciados, designada por Beira Lito­ral/Beira Alta, a que se refere a alínea f) do n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 267/97, de 2 de Outubro, a celebrar entre o Estado Português e a LUSOS­CUT —Auto-Estradas das Beiras Litoral e Alta, S. A.».

 

Em Março de 2010, através do Programa de Estabilidade e Crescimento (2010-2013) – aprovado pelo Governo a 13 de Março de 2010 e a 25 de Março de seguinte através de Resolução aprovada pela Assembleia da Repú­blica – o Governo já assumia que seriam «introduzidas taxas nas auto-estra­das sem custos para o utilizador (SCUT) na Conces­são SCUT Norte Litoral, Concessão SCUT Grande Porto e Concessão SCUT Costa de Prata». Nas restan­tes SCUT – onde se inclui a designada Beira Litoral/Beira Alta, de que aqui curamos – assumia-se que seriam «introduzidas taxas de por­tagem, uma vez verificados os critérios utilizados para a sua introdução».


A deterioração das condições do País, razões de natureza económica e finan­ceira rela­cionadas com a necessidade de consolidação das contas públicas resultante do estado das finanças públicas do País e do incumprimento dos valores do défice orçamental e da dívida pública a que o Estado por­tuguês se encontra vinculado no quadro das suas obri­gações para com a União Euro­peia, levaram a que o governo procedesse «à implemen­tação do novo modelo de gestão e financiamento do sector das infra-estruturas rodoviá­rias, assente nos princípios de

 

(i) coesão territorial, traduzido na assun­ção complementar de encar­gos relativa­mente a infra-estruturas rodoviárias seleccionadas, aten­dendo, sem­pre que tal se justifique, aos indicadores de desenvolvi­mento sócio-económico das regiões em causa e à ausência de alter­nativas viáveis;

 

(ii) solidariedade intergeracional, traduzido na adequada distribuição dos custos da rede rodoviária nacional pelos respec­tivos beneficiá­rios, pre­sentes e futuros, atendendo à vida útil das mesmas, e favore­cendo o ajustamento da respectiva amortização financeira à sua amortização económica;

 

(iii) eficiência ambiental;

 

(iv) contratualiza­ção de longo prazo da concessão da rede rodoviá­ria nacional entre o Estado e a E.P.  – Estradas de Portugal SA;

 

(v) definição do preço global do serviço representado pelo uso e pela disponibi­lidade da rede rodoviária nacio­nal, assente na criação da contribuição de serviço rodoviário como receita própria da E.P. – Estradas de Portugal SA;

 

(vi) associação de investimento privado ao desenvolvi­mento da rede rodoviária nacional, traduzida no reforço das parcerias público-priva­das e na transfe­rência de riscos para os parceiros privados; e (vii) reforço da segurança rodo­viária».

 

À luz destes princípios, o Decreto-Lei nº 44-D/2010 de 5 de Maio procedeu à revisão das bases da concessão da concepção, projecto, construção, finan­ciamento, exploração e conservação de lanços de auto-estrada e conjuntos viários associados, designada por Beira Litoral/Beira Alta – que através do Decreto-Lei nº 142-A/2001 de 24 de tinha sido atribuída à Sociedade Lusos­cut – Auto-Estradas das Beiras Litoral e Alta, S. A..

 

Em consequência desta revisão das bases da concessão, a Resolução do Con­selho de Ministros nº 39-B/2010, de 6 de Maio, aprovou a minuta «do con­trato de alteração ao contrato de concessão da concepção, projecto, constru­ção, financiamento, exploração e conservação de lanços de auto-estrada e conjuntos viários associados, designada por Beira Litoral/Beira Alta».

 

Foi igualmente nesta data – 6 de Maio de 2010 – que o Governo aprovou o Decreto-Lei nº 67-A/2010, publicado em Diário da República apenas a 14 de Junho do mesmo ano, mediante o qual se procedeu à identificação dos lanços e dos sublanços de auto-estrada isentos e dos sujeitos ao regime de cobrança de taxas de portagem aos utilizadores e fixa a data a partir da qual se inicia a cobrança das referidas taxas.

 

Porém, e porque urgiu regulamentar a forma de pagamento das portagens cuja introdu­ção se anunciava, a Assembleia da República, sob proposta do Governo, aprovou a Lei 46/2010 de 7 de Setembro, cujo artigo 3º – alterando, por aditamento, dois artigos ao Decreto-Lei nº 112/2009 de 18 de Maio – veio estabelecer as formas de pagamento das referidas portagens. Adiante tere­mos necessidade de nos referir, de forma particular­mente detalhada, a este diploma legislativo.


E, concretizando toda a evolução político-legislativa e administrativa supra enunciada, a 22 de Setembro, através da Resolução 75/2010, o Conselho de Ministro resolveu «adoptar o princípio da universalidade na implementa­ção do regime de cobrança de taxas de portagem em todas as auto-estradas sem custos para o utilizador (SCUT)», sendo que optou por concretizar tal resolu­ção em momentos distintos: em conformidade com o Decreto-Lei nº 67-A/2010, de 14 de Junho,

 

(i) introduzir um regime efectivo de cobrança de taxas de portagens nas auto-estradas SCUT Norte Litoral, Grande Porto e Costa de Prata a partir de 15 de Outubro de 2010; e

 

(ii) introduzir um regime efectivo de cobrança de taxas de portagem nas restan­tes auto-estradas SCUT, designadas por SCUT Interior Norte, Beira Lito­ral/Beira Alta, Beira Interior e Algarve, até 15 de Abril de 2011».

 

4. Da violação de princípios e normas de direito da União Europeia

Um dos princípios fundamentais em que assenta o projecto europeu iniciado com a cria­ção das Comunidades Europeias, e hoje corporizado pela União Europeia, é o princípio da liberdade de circulação de pessoas.

 

Começou por ser um princípio indispensável à criação do grande mercado interno con­substanciado no Objectivo’92; contribuiu para definir esse mesmo mercado comum europeu; ganhou o relevo e a dignidade jurídicas que resul­tam da sua inclusão, ao nível do direito comunitário originário, no actual Tra­tado sobre o Funcionamento da União Europeia; ao nível do direito comunitá­rio derivado, em diferentes e diversas fontes espalhadas por todo o edifício jurídico comunitário, maxime a Directiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no ter­ritó­rio dos Estados-Membros; ao nível jurisprudencial, numa interminável série de arestos tirados pela mais elevada instância jurisdicional da União Europeia; ao nível doutrinário, através duma extensa e quase inumerável série de tex­tos, estudos, docu­mentos e ensaios que lhe têm sido dedicados ao longo (sobretudo) dos últimos tempos.

 

Por uma questão de economia de tempo – centremo-nos nas principais dispo­sições dos Tratados sobre a matéria em causa.

 

Desde logo, na Parte II consagrada à «Não discriminação e cidadania da União», o artigo 20º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (doravante, apenas TFUE) institui a cidadania da União (nº 1). Logo, porém, que se impõe densificar e dar conteúdo ao conceito de cidadania da União, o primeiro direito enunciado na alínea a) do nº 2 desse mesmo artigo é o direito a «circular e permanecer livremente no território dos Estados-Membros». Direito à livre circulação dos cidadãos europeus dentro do ter­ritório da União, pois!

 

E tão intrínseca e umbilical é a ligação do conceito de cidadania da União a uma série de direitos individuais dos cidadãos europeus, que a própria Carta dos Direitos Funda­mentais da União Europeia – que começou por se limitar a ser «proclamada» na Cimeira do Conselho Europeu de Nice de 7 de Dezembro de 2000 e que veio a ser alterada a 12 de Dezembro de 2007, ganhando dig­nidade jurídica com as alterações que o Tratado de Lisboa introduziu ao Tra­tado da União Europeia (doravante, apenas, TUE) –, no seu artigo 45º nº 1, volta a ser claramente inequívoca, dispondo que «qualquer cidadão da União goza do direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados-Membros». Outra norma de direito comunitário originário a ocupar-se da mesma ques­tão – e nem se invoque qualquer falta de eficácia ou força jurí­dica da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia pelo facto de a mesma não integrar os Tratados euro­peus, atento o disposto no artigo 6º nº 1 do TUE, que reconhece àquela Carta e às nor­mas que a integram o mesmo valor jurídico que os Tratados. Uma vez mais, o direito à livre circulação dos cidadãos europeus dentro do território da União!

 

Mas, para afastar eventuais dúvidas ou reservas, ou inclusivamente para autonomizar este direito do próprio conceito de cidadania europeia – e em boa verdade este direito é-lhe anterior, porquanto teve acolhimento nos Tra­tados por ocasião da assinatura do Tratado de Amesterdão de 1997 que inte­grou no direito comunitário originário os prin­cípios estruturantes do acervo de Schengen que pretendeu criar, a partir de 1985, na Europa das Comunida­des, um espaço de livre circulação de pessoas, mesmo antes da consagração do princípio da cidadania europeia pelo Tratado da União Europeia – o artigo 21º nº 1 do mesmo TFUE acrescenta, esclarece e dispõe que «qualquer cida­dão da União goza do direito de circular e permanecer livremente no territó­rio dos Estados-Membros, sem prejuízo das limitações e condições previstas nos tratados e nas disposi­ções adoptadas em sua aplicação». Outra vez o direito à livre circulação dos cidadãos europeus dentro do território da União consagrado ao nível do direito comunitário origi­nário!

 

Por fim, no Título IV subordinado à epígrafe «A livre circulação de pessoas, de serviços e de capitais», o artigo 45º nº 3 alínea b) é inequívoco – «a livre cir­culação dos traba­lhadores compreende […] o direito de deslocar-se livre­mente […] no território dos Estados-Membros». Ainda e outra vez – a consa­gração jurídica, em sede de documento constitucional da UE, do princípio ou direito à livre circulação das pessoas, dos traba­lhadores, dos cidadãos euro­peus, em síntese!

 

Decerto, aqui chegados, enunciados estes diferentes normativos que acolhem o princípio da liberdade de circulação dos cidadãos europeus, ocorre questio­nar – é este um direito irrestrito? 

 

Seguramente que não.

 

E o TFUE alude à possibilidade de o direito à livre circulação de pessoas ser «comprimido» através de limitações e condições previstas no próprio TFUE. Importa, assim, averiguar que tipo de limitações o Tratado impõe ou admite ao princípio da liberdade de circulação de pessoas. Encontramos a resposta no artigo 45º nº 3 do TFUE que esclarece que tal princípio pode ser compri­mido ou limitado «por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública».

 

Ou seja, apenas nas três situações referidas – (i) razões de ordem pública, (ii) segu­rança pública e (iii) saúde pública – o direito comunitário originário, o TFUE que conjuntamente com o TUE fun­cionam como a verdadeira constituição mate­rial da UE, admite restri­ções ou limitações ao princípio/direito à livre circula­ção das pessoas, dos trabalhado­res, numa palavra – dos cidadãos europeus.


Retornando ao assunto que por ora nos ocupa – em que medida a introdução de porta­gens, por parte do Governo português, na A25 – também denomi­nada SCUT das Beira Litoral/Beira Alta – viola e contraria as normas e os prin­cípios resumidamente referen­ciados em matéria de protecção da liberdade de circulação dos cidadãos europeus? Fá-lo de uma forma ostensiva, grosseira e indesmentível.

 

Esclareçamos um aspecto prévio mas fundamental – não questionamos, em tese geral, a legitimidade do governo português portajar e taxar estradas (auto-estradas) que estavam isentas desse custo ou desse ónus, verificados que sejam alguns requisitos que, de todo, estão ausentes neste caso con­creto.

 

Desde logo, o argumento histórico – o «velho» IP5, posterior A25 e, por fim, SCUT das Beira Litoral/Beira Alta, foi construído, com recurso também a com­participações e fun­dos comunitários, para facilitar a mobilidade, melhorar o acesso e fluir a circulação entre os territórios por que passava (maxime o Município de Aveiro que se encontra na sua extremidade ocidental, o seu porto marítimo e a próspera região em que o mesmo se insere e que o envolve) e a fronteira de Vilar Formoso (localizada na sua extremidade leste), forma de igualmente beneficiar o acesso rodoviário entre Portugal e Espanha e entre Espanha e Portugal. As sucessivas evoluções registadas no perfil do primitivo IP5 visaram apenas melhorar e beneficiar essas mesmas condições, sem nunca curar de construir qualquer via de acesso rodoviária que servisse de alternativa e/ou comple­mento àquela. De resto, essa evolução registada no perfil do primitivo IP5 fez-se quase sempre, sob o mesmo traçado daquela via – e quando assim não sucedeu foi para elimi­nar deficiências de projecto, zonas de grande sinistralidade, em suma, para melhorar o perfil e as condi­ções daquela via em concreto.

 

Em segundo lugar, a já referida falta de alternativa à auto-estrada agora por­tajada. Quem se quiser deslocar no sentido Portugal – Espanha ou no sentido Espanha – Portu­gal, tendo durante anos a fio feito esse percurso pelo «velho» IP5, futura A25 e SCUT das Beira Litoral/Beira Alta, não dispõe de qualquer outro eixo rodoviário alternativo inte­grante do projecto rodoviário nacional para realizar o seu trajecto. Existe só aquele, apenas aquele e nenhum mais que aquele itinerário para ligar Portugal a Espanha e vice-versa na zona geo­gráfica que consideramos.

 

E assim, somos levados a um dos principais argumentos que motiva esta nossa exposi­ção:

 

(i) existindo apenas um traçado rodoviário para efectuar a ligação de Aveiro, do seu porto marítimo, da vasta e rica região onde este Muni­cípio se insere, à fron­teira espanhola (e vice-versa);

 

(ii) não existindo qualquer alternativa contemplada no plano rodoviá­rio nacional àquele eixo;

 

(iii) tendo o mesmo sido construído com recurso a fundos nacio­nais mas também a fundos europeus justamente para permitir uma maior mobilidade entre os dois Estados ibéricos e reforçar a liberdade de circulação de cidadãos (e, evi­dente­mente, de mercadorias);

 

(iv) tendo a referida via sido utilizada, até à presente data, sem quaisquer custos para os seus utilizadores

 

– a introdução de portagens, nesta via em concreto e considerando os factos expostos,

 

(i) constitui um óbvio constrangimento à liberdade de circulação dos cidadãos europeus, sobretudo de nacionais de Estados-Membros ter­ceiros (mas também de nacionais portugueses) que demandem toda a vasta área geográfica servida por esta via;

 

(ii) traduz-se numa inaceitável limitação ao direito de livre circula­ção de traba­lhadores e cidadãos europeus em geral, consagrado nos Tra­tados comunitários, onerando essa mesma circulação;

 

(iii) não se pode subsumir a nenhuma das situações em que o pró­prio TFUE con­sidera que o direito de livre circula­ção pode ser com­primido ou limitado (recor­dando: razões de ordem pública, segu­rança pública e saúde pública, cfr artigo 45º nº 3 do TFUE).

 

Por fim, e sem prejuízo, mas não revestindo menor importância – é impossível não descortinar no sis­tema de pagamento das portagens a introduzir que foi desenhado e concebido pelas autoridades portuguesas uma inaceitável violação do princípio da discriminação em função da nacionali­dade.


De facto, o sistema contemplado para o pagamento de portagens na A25, SCUT das Bei­ra Litoral/Beira Alta – mas também em todas as demais SCUT que até ao momento não tinham qualquer custo para o utilizador e passaram a ser portajadas – pressupõe, nos termos do artigo 4º-A do Decreto-Lei nº 112/2009 – introduzido neste diploma através da supra citada Lei nº 46/2010 de 7 de Setembro – a opção por uma de quatro alternati­vas: (i) a utilização do dispositivo electrónico de matrícula; (ii) a utilização do dispositivo Via Verde; (iii) a utilização de dispositivo temporário; (iv) o sistema de pós-pagamento que deve ser efectuado no prazo máximo de cinco dias junto de uma entidade de cobrança de porta­gens (ECP).


Ou seja, ao contrário do que acontece com os sistemas normais de portagem, não foi prevista nem contemplada a possibilidade de as novas portagens a instalar serem pagas em numerário (ou através de cartão bancário) no exacto momento em que os cidadãos por elas passam. Outro óbice e restrição de monta ao sempre citado princípio da liber­dade de circulação de cidadãos – trave mestra da União Europeia em que se estrutura o projecto europeu – sendo que, neste caso específico e desta feita em concreto é impossí­vel não se divisar uma outra flagrante violação do princípio da não discriminação em razão da nacionalidade – aco­lhido no artigo 18º do TFUE.


De facto, se o sistema acolhido de cobrança de porta­gens a instalar na A25/SCUT da Beiras Litoral/Beira Alta se mostra deveras complexo e oneroso para os cidadãos nacio­nais, cidadãos europeus de outros Estados são mani­festamente discriminados por esse mesmo sistema.

 

Vejamos:

 

Ao estabelecer as (quatro) formas possíveis de cobrança de portagens nas auto-estradas onde as mesmas passarão a ser cobradas – recorde-se: (i) a utilização do dispositivo electrónico de matrícula; (ii) a utilização do dispositivo Via Verde; (iii) a utilização de dispositivo temporário; (iv) o sistema de pós-pagamento que deve ser efectuado no prazo máximo de cinco dias junto de uma entidade de cobrança de porta­gens (ECP) – o artigo 4º-A do Decreto-Lei nº 112/2009 de 18 de Maio, com a redacção saída da Lei nº 46/2010 de 7 de Setembro, esclarece que a forma de paga­mento de portagem traduzida no sistema de pós-pagamento que deve ser efectuado no prazo máximo de cinco dias junto de uma ECP não é aplicável aos veículos de matrícula estrangeira!

 

De resto, já a Portaria nº 314-B/210 de 14 de Junho, na primeira aproximação à regula­mentação do pagamento electrónico de portagens, esclarecia no seu artigo 1º (números 3 e 4) que a mesma se destinava a definir (i) o sistema de pagamento no âmbito da cobrança electrónica de portagens, e também (ii) o regime aplicável aos veículos de matrícula estrangeira, tendo em vista o pagamento de portagens durante o período de permanência em território nacio­nal,– desde logo deixando perceber que, em flagrante violação dos princípios (constitucio­nal e juseuropeu) da igualdade e da não discriminação em razão da nacionalidade, estava desenhado um modelo de cobrança de portagens para nacionais e outro para «estrangeiros».


Isto é, e concretizando o modelo legalmente consagrado pela Portaria nº 1033-C/2010 de 6 de Outubro – que alterou o regime consagrado na já refe­rida Portaria nº 314-B/2010 de 14 de Junho:

 

Os veículos de matrícula estrangeira – só por o serem, apenas em função da «nacionali­dade» da matrícula – estão impedidos de utilizar o sistema de pós-pagamento das porta­gens que vierem a ser instaladas na SCUT da Beira Lito­ral/Beira Alta – tal como já sucede com todas as demais SCUT que já estão a ser portajadas – e apenas têm a possi­bilidade de recorrer a um dos três sis­temas seguintes de pagamento: (i) a utilização do dispositivo electrónico de matrícula; (ii) a utilização do dispositivo Via Verde; e (iii) a utilização de dispositivo temporário.


Ora, considerando que os dois primeiros sistemas identificados – (i) a utilização do dispositivo electrónico de matrícula; e (ii) a utilização do dispositivo Via Verde – possuem um carácter de permanência e estabilidade que não se compagina com a uti­lização eventual, acidental ou ocasional típica dos cidadãos dos Estados-Membros ter­ceiros, que ocasionalmente demandem território nacio­nal, para estes fica reservado, na prática e em exclusivo, o sistema da utiliza­ção de um dispositivo temporário para paga­mento das portagens que vierem a ser instaladas na SCUT da Beira Litoral/Beira Alta (à semelhança do que já está a ocorrer nas SCUT recentemente portajadas).


Mas como se tudo isto ainda não bastasse, acontece que tais dispositivos temporários para pagamento de portagens – único sistema a que, na prática, poderão recorrer os cidadãos não nacionais – além duma caução a liquidar no momento da respectiva aqui­sição, deverão ser objecto de um pré-pagamento que tem o valor mínimo de 50€ para os veículos ligeiros e de 100€ para os veículos pesados – sendo que os seus adquirentes não têm direito ao reem­bolso dos créditos não utilizados!

 

Isto é,

 

para além de uma óbvia questão de inconstitucionalidade – que terá de ser dirimida em sede jurisdicional interna – assente numa violação do princípio constitucional interno de reserva de lei, o Governo, ao não admitir o reem­bolso do valor não utilizado com que os cidadãos não nacionais «carreguem» os seus dispositivos temporários e pré-pagos, acaba por criar um imposto que apenas se aplica a cidadãos estrangeiros – persistindo e reincidindo numa segunda violação, de forma grosseira, do supracitado princípio da não discri­minação em razão da nacio­nalidade, previsto no artigo 18º nº 1 do TFUE.

 

5. Conclusão

Face ao exposto e à argumentação expendida, acreditando que introdução de taxas de portagem na auto-estrada A25 anteriormente sem custos para os utilizadores (SCUT), também denominada SCUT das Beira Litoral/Beira Alta, constitui uma flagrante viola­ção do princípio e direito à livre circulação de pessoas e do princípio da não discrimi­nação em razão da nacionalidade, ambos princí­pios básicos acolhidos no Tra­tado sobre o Funcionamento da União Euro­peia e demais legislação comunitária conexa em vigor, o Municí­pio de Aveiro, representado pelo Presidente da sua Câmara Municipal, apre­senta a pre­sente queixa à Comissão Europeia, requerendo que sejam pedi­dos todos os devidos esclarecimentos ao governo português sobre a matéria aqui vertida e, havendo motivo para tal, dado seguimento ao exposto mediante apresen­tação do competente procedi­mento por infracção junto do Tribunal de Jus­tiça da União Europeia.

 

Com os melhores cumprimentos,»

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publicado por Joao Pedro Dias às 17:47


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