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O conflito da pós-modernidade

Quarta-feira, 23.08.06

Artigo de opinião publicado na edição de hoje do semanário O Diabo:

«Enquanto a loucura dos homens continua a espalhar a morte, a destruição e a carnificina pelas terras mártires do Oriente Médio, e porque se frustraram as esperanças na actuação de outras entidades e organizações, a comunidade internacional vira, uma vez mais, a sua atenção para a Organização das Nações Unidas, nela depositando a esperança em que seja posto um rápido fim ao conflito militar. Esta, porém, a ONU, continua entretida a discutir a crise ao ritmo da diploma­cia, de forma vagarosa e detalhada, como se nada de grave estivesse acontecendo, como se de mais uma crise apenas se tratasse. As negociações travadas durante o fim de semana passado em Nova Ior­que – entre os Estados Unidos que actuavam como representante oficioso de Israel e a França que pre­tendia representar não se sabe bem quem – tentado obter o consenso sobre um texto de resolução a apresentar ao Conselho de Segurança mostraram-nos com mediana clareza uma série de lições que não podem ficar esquecidas no baú das recordações da diplomacia internacional e das relações internacio­nais. Em primeiro lugar, provaram – se necessário ainda fosse – como conseguem ser diferentes os tempos da guerra e da diplomacia. Aquele, o tempo da guerra, um tempo acelerado, implacável, impiedoso, fazendo aumentar exponencialmente o número de vítimas, culpadas e inocentes, a cada hora que passa. Este, o tempo da diplomacia, um tempo vagaroso, meticuloso, ponderando até à exaustão o peso de cada palavra, aparentemente indiferente ao caos, à violência e à destruição; um tempo que parecia ter e ser todo o tempo do mundo. Dois tempos, porém, tragicamente coincidentes no tempo que passa: o tempo das ruínas de Haifa ou de Beirute e o tempo das alcatifas de Nova Iorque. Em segundo lugar, as negociações em causa vieram evidenciar, uma vez mais, um novo apagamento da União Europeia de mais uma grave crise que se trava nas proximidades da sua fronteira externa. A pre­sidência de turno finlandesa, também por solicitação portuguesa, reuniu extraordinariamente o Conselho de Ministros dos Assuntos Gerais; este, regressou às proclamações solenes de duvidosa eficácia prática tendo obtido o consenso possível – que não o desejado – sobre qual deveria ser o rumo dos esforços de paz; e não há notícia que mais alguma coisa de relevante tenha sucedido em termos de actuação ou intervenção das instituições europeias – para além do protagonismo francês que é duvidoso que represente o sentir global da União. O Alto Representante para a Política Externa da União Euro­peia desapareceu por completo de cena e nos corredores da eurocracia não falta quem critique as férias estivais de quem deveria ser o principal rosto da actuação da União Europeia neste conflito que se desenrola nas imediações da sua fronteira exterior. Pior do que o apagamento do senhor Javier Solana, visto com gáudio redobrado por aqueles que da Europa e do projecto europeu apenas têm uma visão económica recusando-lhe qualquer dimensão política, só mesmo as dúvidas sobre a dispensabilidade do cargo e da função que os eurocépticos de preceito começam a colocar e a difundir. Em terceiro lugar, é conveniente não esquecer o facto de o acordo de princípio sobre o texto do projecto de resolução a ser presente ao Conselho de Segurança ter sido obtido entre dois Estados ocidentais. Ora, o conflito a que se pretende pôr um ponto final opõe Israel a uma facção armada xiita existente no território libanês. É, pois, no mínimo, discutível e questionável que os Estados Unidos e a França fossem ou sejam os actores colocados em melhor posição para lograrem um compromisso que suspenda ou termine com as hostilidades. Os principais Estados muçulmanos – Arábia Saudita, Azerbeijão, Bangla­desh, Brunei, Egipto, Emirados Árabes Unidos, Irão, Jordânia, Líbano, Malásia, Palestina, Paquistão, Qatar, Senegal, Síria, Turquia e o Iémen – reunidos no quadro da Conferência Islâmica já tiveram, aliás, nos últimos dias, oportunidade de rejeitar em absoluto qualquer solução que venha a ser encontrada exclusivamente pelos Estados ocidentais no quadro da ONU e que não contem­ple os seus pontos de vista e não suponha o seu envolvimento e a sua participação. E não estamos a falar apenas de Estados extremistas tributários do fundamentalismo islâmico; na lista dos signatários da Declaração referida, contam-se alguns tradicionais aliados do mundo ocidental que, todavia, no caso concreto, não hesitaram em rejeitar uma «solução ocidental» para o conflito em curso. Finalmente, em quarto lugar, será oportuno recordar que o conflito que grassa no Médio Oriente é, pela sua própria natureza, um conflito «atípico», de tipo novo – um conflito da pós-modernidade – que apenas indirecta ou mediatamente opõe Israel ao Líbano. De facto, do que se trata neste momento, é do confronto armado entre um Estado e um «não-Estado»; um conflito armado entre Israel e o Hezzbolah, um movi­mento político-militar que se apossou de uma parcela do território libanês para daí desferir os seus ata­ques contra o Estado hebraico. Movimento político-militar por detrás do qual não falta quem divise os interesses das facções mais radicais do islamismo contemporâneo simbolizadas na Síria e no Irão e que – sinal da contradição dos tempos que passam – a generalidade da comunidade internacional continua a incluir em todas as listagens de movimentos ter­roristas que se vão elaborando apesar de o mesmo des­frutar do apoio popular que lhe permite ter repre­sentação parlamentar e, por força dela, presença no próprio governo de Beirute. Ora, a questão que se coloca com alguma pertinência é justamente a de saber se as clássicas organiza­ções internacionais – máxime a própria Organização das Nações Unidas – que foram pensadas e estru­turadas para o mundo clássico e moderno em que apenas os Estados surgiam como actores de relevo da comunidade internacional, continuam ou não a ser as instâncias adequadas à resolução destes conflitos novos da pós-modernidade. Conflitos caracterizados pela intervenção dos novos actores que simbolizam a emergência de novos poderes. Poderes erráticos que despontam municiados de um poder político e de um potencial militar outrora só ao alcance dos próprios Estados. Poderes geralmente não reconhecidos pela generalidade dos sujeitos que actuam na comunidade internacional. Mas poderes que, não raro, podem invocar a legitimidade eleitoral que advém do próprio apoio popular. Sucedeu assim recentemente nos territórios da Autoridade Palestiniana com o sucesso eleitoral do Hamas; e sucedeu assim no Líbano com o Hezzbolah. Ambos, movimentos classificados pela comunidade internacional como terroristas; ambos, contando com o apoio popular e eleitoral dos povos cuja representação invocam; ambos, acusados de protagonizarem a versão mais radical e fundamentalista do Islão; ambos, ausentes das instâncias inter­nacionais de representação política; ambos, em guerra com Israel.Resulta assim que, num mundo caracterizado por uma inquestionável dose de anarquia ou de desordem, a ONU deixou de ser o lugar «onde todos falam com todos» – para parafrasearmos Adriano Moreira. Os novos actores na cena internacional não estão representados na organização de Nova Iorque; em bom rigor não estão representados em qualquer instância política internacional. Mas, em boa verdade, apesar de a ONU já não representar todos os sujeitos que hoje actuam no panorama internacional, trata-se de um lugar que ainda não foi substituído por nenhum outro; nem, tão-pouco, reformado para melhor ilustrar os novos tempos pós-modernos. Daí que sejam legítimas todas as dúvidas, nomeadamente as que incidem sobre a aptidão da organização de Nova Iorque para resolver alguns dos mais graves conflitos dos nossos dias. A crise do Oriente Médio é apenas o mais recente epi­sódio desse teste permanente à capacidade e aptidão da ONU para lidar com o mundo pós-moderno para o qual, assumidamente, não foi criada nem estruturada. Infelizmente, não está dito nem escrito que seja o último episódio desse teste permanente».</span>

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publicado por Joao Pedro Dias às 15:37

A UE e a crise no Médio Oriente

Terça-feira, 01.08.06

Artigo de opinião publicado na edição de hoje do semanário O Diabo:

«A loucura dos homens voltou a espalhar a guerra e o terror nas cercanias da fronteira externa da União Europeia. E enquanto as tropas israelitas continuam a bombardear indiscriminadamente o sul do Líbano – invocando o direito de legítima defesa do seu território, mas ultrapassando-o também, como aconteceu no passado domingo com o bárbaro bombardeamento de Cana que matou 51 civis entre os quais 25 crianças e que conseguiu reunir contra o Estado hebraico a generalidade da comunidade internacional e a totalidade dos governos árabes ora reunidos em torno do governo de Beirute, coisa até ao momento nunca acontecida no decorrer desta crise – enquanto tudo isto acontece e por tudo isto estar a acontecer, cresce na comunidade internacional a convicção de que só um cessar-fogo que garanta a criação de uma «zona tampão» entre o norte de Israel e o sul do Líbano, patrulhada por uma força multinacional de interposição, poderá no imediato colocar um ponto final na carnificina que se arrasta há mais de três semanas naquela região sofrida do globo. Nesta conjuntura nova que se vai desenhando no Oriente Médio, há fundadas expectativas sobre a atitude que irá assumir a Europa da União: numa época ainda caracterizada pela crise constitucional que persiste em pairar sobre a sua agenda política interna, permanecerá a União Europeia fiel às grandiloquentes proclamações de boas intenções, às condenações da praxe e às declarações de estilo acompanhadas dos habituais donativos de emergência cuja ineficácia e inconsequência têm por hábito ser directamente proporcionais à retórica utilizada ou, dirimindo e resolvendo divergências internas, arriscará a uma efectiva intervenção, assumindo plenamente as responsabilidades inerentes a um actor geopolítico regional actuando num mundo globalizado? Este é o dilema a que a União Europeia não poderá fugir nos tempos mais próximos. O dilema entre manter uma posição passiva face a mais um conflito regional que ocorre nas suas imediações e nas proximidades das suas fronteiras exteriores ou assumir uma atitude pró-activa que indicie um esboço de uma política externa e de defesa ou segurança comuns tantas vezes ensaiada e outras tantas frustrada, que deixe transparecer um mínimo de vontade política que ultrapasse a habitual retórica eurocrática. No caso em apreço, há a convicção generalizada de que a União Europeia poderia beneficiar de acrescidas condições de sucesso para o desempenho da missão arbitral que se reclama da comunidade internacional, face sobretudo à comprometida e parcial intervenção que os EUA desempenham no conflito e na região – e que faz com que não sejam vistos, por todas as partes directa ou indirectamente envolvidas no processo, como suficientemente equidistantes e imparciais para mediarem o conflito. Para desempenhar tal missão, porém, é necessário que a Europa da União dê provas de uma coesão que até agora ainda não foi capaz de evidenciar e denuncie uma efectiva vontade política que muitos dos seus detractores se comprazem em verificar que (ainda) não existe. Infelizmente, tanto a recente Conferência de Roma como as recentes negociações de Nova Iorque têm evidenciado mais a tendência europeia para a divisão e a cisão do que o impulso necessário para a construção dessa vontade política. Decerto: não possuindo forças militares próprias – para além das que são fornecidas pelos seus Estados membros – nem cadeias de comando devidamente estruturadas e tendo sempre de se socorrer dos meios logísticos e materiais que lhe forem disponibilizados por outras organizações internacionais (nomeadamente a NATO) para a projecção de qualquer força militar ou para a estruturação ou participação numa força multinacional de interposição, qualquer intervenção da União Europeia neste conflito suporá sempre a necessária cobertura político-jurídica do Conselho de Segurança das Nações Unidas mas também a prévia resolução das divergências internas entre os mais relevantes dos seus Estados membros em face do conflito. Essas divergências ou tensões, aliás, têm sido evidentes: (I) seja em sede do Conselho de Segurança da ONU onde as posturas francesa e britânica não raro têm conflituado e divergido; (II) seja na dificuldade com que a chanceler Ângela Merkel se viu impedida de intermediar as negociações de libertação dos soldados israelitas feitos reféns do Hezzbolah; (III) seja através da lamentável e completa falta de actuação diplomática relevante tanto da presidência finlandesa da UE como do respectivo Alto Representante para a Política Externa – o senhor Javier Solana – que ora se tem visto ultrapassado pela actuação da senhora Rice ora aparece mesmo secundarizado pela actuação da senhora Benita Ferrero-Waldner – a Comissária Europeia para as relações externas que actua sob autoridade directa do Presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, mas que, neste domínio, carece quase por completo de efectivas competências jurídicas; (IV) seja, finalmente, através da demonstração de desunião europeia dada pelas diplomacias de Londres e Paris, cada qual procurando actuar individual e isoladamente, a primeira com Tony Blair em Washington, a segunda com o Ministro dos Negócios Estrangeiros a caminho de Beirute e de Telavive, via Chipre, cada qual procurando buscar uma solução para a crise e colher os louros respectivos. Porém, o arrastamento do conflito, que se anuncia como provável ou mesmo inevitável – chegando o «requinte de malvadez» ao ponto de se definir com precisão cirúrgica o exacto número de dias que o mesmo ainda irá durar – poderá permitir às instâncias apropriadas da União Europeia – a sua presidência e o seu Alto Representante para a Política Externa – beneficiarem do tempo necessário à preparação duma actuação concertada; e numa tal perspectiva não será arriscado vaticinar o papel fulcral que os pequenos e médios países da União poderão desempenhar na busca dos necessários consensos à formulação duma posição comum europeia. Em vista dessa hipótese, aliás, bem andou Luís Amado, o novo Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal – quer quando sugeriu a realização duma reunião extraordinária dos chefes da diplomacia dos «25» quer quando admitiu, em termos gerais, verificados os necessários pressupostos, a participação de forças armadas portuguesas numa eventual missão europeia que venha a ser decidida por Bruxelas. Se, como começámos por referir, é verdade que a loucura dos homens voltou a espalhar a guerra e o terror nas cercanias da fronteira externa da União Europeia, não será menos verdade que neste caso concreto, e uma vez mais, o Mundo espera pela Europa, sobretudo pela Europa organizada em torno da União. Não faz sentido, por isso, que essa mesma Europa persista num ensurdecedor silêncio teimando em fugir desse mesmo Mundo, negando-lhe aquilo que ele lhe pede, parecendo contentar-se em ser apenas o tão propalado gigante económico que não consegue ultrapassar o estádio de um simples anão político. A ser assim, demitindo-se a UE de ter uma actuação política de relevo, contentando-se em actuar apenas nos domínios económicos, a prazo mais ou menos longo poderá ser o futuro do próprio projecto europeu a estar em causa».

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publicado por Joao Pedro Dias às 15:40